Criança e Adolescente
Levantamento do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes mostra São Paulo como o penúltimo Estado em denúncias, à frente apenas do Amapá. Isso não significa que inexistam – o baixo índice de delação pode sinalizar justamente o contrário. Falhas nas diferentes instâncias da rede pública de proteção à infância dificultam a identificação e solução dos casos, o que, por sua vez, desestimula os cidadãos a denunciarem, na avaliação de especialistas ouvidos pelo Estado.
No caminho entre a ligação ao Disque 100, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e o atendimento à criança faltam profissionais qualificados e infraestrutura para identificar, encaminhar e acompanhar os casos. O retorno sobre o acompanhamento das denúncias referentes a São Paulo não chega a 20%, segundo o Comitê. Destes, 80% vêm da Justiça, dos quais mais da metade informam que “o caso em questão não pode ser acompanhado”.
Os dados constam do relatório de conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, da Câmara Municipal, que será apresentado quinta-feira. Entre as 18 propostas do documento, estão a vinculação orçamentária para políticas de proteção, atendimento especializado nos hospitais municipais e a criação de um Observatório da Infância para reunir dados do disque-denúncia, da rede municipal, das polícias e da Justiça sobre pedofilia – hoje, não existe esse diagnóstico – e avaliar as políticas públicas municipais para crianças e adolescentes.
No âmbito federal, pelo menos 13 propostas sobre o tema, da CPI do Senado, esperam votação na casa e há outras 24 na Câmara dos Deputados. Se aprovadas, devem incrementar o Plano de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil, que completa uma década em 2010, e embora tenha colocado o tema em discussão no País, avançou pouco além da criação do disque-denúncia, segundo o Comitê Nacional.
CONSELHOS INSUFICIENTES
Desde que foi criado o Disque100, em 2003, a média diária de denúncias de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes passou de 12 para 82 ligações, salto de 583,3%. Não que aconteçam em maior quantidade agora, mas estão mais visíveis e menos toleráveis. Para que o sistema tenha efeito, porém, toda a rede de atendimento e proteção à criança que segue à suspeita precisa funcionar, sob risco de o serviço perder a confiança da população.
As denúncias são encaminhadas aos 37 Conselhos Tutelares da cidade. Mas eles são insuficientes. Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) adota como diretriz um conselho para cada 200 mil habitantes. Com 11 milhões de pessoas, São Paulo deveria ter 55 conselhos, 48% a mais do que tem. Os conselheiros deveriam ser 285 e não os 185 atuais. E eles reclamam não ter recursos, da Prefeitura, para trabalhar. “Há três meses, não temos cartucho para impressora, você imagina o resto”, diz o conselheiro Luciano Araújo. Santana, onde ele atua, recebeu, de janeiro a novembro, 9.500 denúncias de violações contra crianças – mais de 28 por dia – para cinco conselheiros.
DESPREPARO
Para ser conselheiro basta ter 21 anos e ser idôneo. A Lei Municipal 11.123 prevê uma equipe multidisciplinar de apoio, com assistente social, psicólogo e advogado em cada Conselho para melhor orientar casos tão delicados quanto o estupro de uma criança. Mas em São Paulo não há. A capacitação dos conselheiros é mínima. Já a de professores na rede pública, que o psicólogo Paulo Cesar Pereira, do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência contra Mulheres e Crianças, da Universidade Federal de São Carlos, considera essencial, começou em 2008, em cidades do interior como Catanduva (leia abaixo). “Uma das principais sequelas da criança vítima de abuso sexual é a queda repentina do desempenho escolar, além de apatia, tristeza. Por isso, a importância do professor estar atento, mas ele precisa ser treinado, assim como os profissionais das unidades de saúde, porque têm contato direto e frequente com as crianças”, diz.
REDE FALHA
A suspeita de abuso deve ser informada aos Conselhos Tutelares que, se confirmadas, farão o encaminhamento para a rede pública. Em São Paulo, porém, o único serviço médico para vítimas de abuso sexual é o Hospital Estadual Pérola Byington, que foi criado para atender mulheres, mas teve de passar a receber crianças, que não param de chegar. O local ainda não está adaptado e só atende casos encaminhados por delegacias. São Paulo é o único Estado ainda sem delegacias especializadas, como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Poucas famílias procuram a delegacia comum por medo de expor a criança ou de represálias do abusador – na maioria dos casos de pedofilia, um parente ou pessoa próxima. “A criança já tem dificuldade em falar do abuso porque se sente culpada ou sofre ameaças ou, ainda, tem carinho pelo agressor, no caso do abusador ser alguém tão próximo quanto o pai”, diz Pereira. “Por isso, poucos casos ainda vêm a público e a falta de local para ouvir as crianças torna seu depoimento ainda mais improvável.”
CREAS, CRAS, CAS, CRECAS…
As vítimas de abuso sexual são mais comprometidas psicologicamente porque, em geral, também sofrem violência física e psicológica, além do abuso em questão envolver outros fatores, como a vergonha. “O trauma pode comprometê-la até a vida adulta. Então, isso exige um tratamento multidisciplinar e de longo prazo”, diz o psicólogo. Esse atendimento é hoje feito por cinco ONGs conveniadas, uma em cada região da cidade, com repasses do governo federal para a implementação do Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Embora trate todos os tipos de violência, não só sexual, é um começo. Mas, as ONGs não conseguem atender à demanda. “Eu tenho dez vagas por mês para novos casos. Se abríssemos 20 ou mais, seriam ocupadas imediatamente”, diz a psicóloga Dalka Ferrari, do Instituto Sedes Sapientiae. Há dois Creas, exigência do Suas, mas são apenas a porta de entrada, como os Cras, municipais e que atendem a idosos e adultos.
Quando é preciso afastar a criança da família a dificuldade é ainda maior. Os 17 Centros de Referência da Criança e do Adolescente (Crecas), de estada provisória, têm foco em meninos e meninas de rua e viciados. Eles não têm ambiente adequado ou equipe preparada para atender vítimas de abuso sexual. E entre Creas, Cras, Crecas e outras tantas siglas, ninguém sabe a quem procurar. E os abrigos estão lotados. A secretária de Assistência Social, Alda Marco Antonio, afirma que o Suas está em fase de implementação, por isso, ainda faltam equipamentos. “Nós temos os recursos, mas eles estão dispersos em uma rede desorganizada, sem padrão de atendimento”, avalia o vereador Carlos Bezerra (PSDB), relator da CPI da Pedofilia na Câmara.
No hospital, crianças já são metade das vítimas
Em 24h, de 12 atendidos por violência sexual, 7 tinham menos de 11 anos
João e Pedro têm 8 anos. Vitor completou 7. Artur passou agora pelo 4º aniversário. As idades das meninas Rita, Júlia e Ana vêm em “escadinha”: 9, 7 e 4. Parece a lista de chamada da pré-escola, mas revela a triste rotina da maior unidade de referência de atendimento de vítimas de violência sexual. Todas essas crianças passaram pela sala de emergência do Hospital Estadual Pérola Byington de São Paulo, no intervalo de 24 horas – entre quarta e quinta-feira. Dos 12 pacientes atendidos em um dia por terem o corpo violentado, sete tinham menos de 11 anos. Confirmaram a tendência de que a infância é alvo principal dos agressores.
A participação infantil entre os acolhidos no Pérola avançou nos últimos anos. Em 2000, os menores de 12 anos respondiam por 10,7%, porcentual que chegou a 34,6% em 2003 e 47,3% no ano passado. Este ano alcançou nível recorde, 50,5%. As crianças já são maioria na unidade ginecológica que foi criada para atender mulheres.
Para os médicos, entretanto, o dado não revela que a violência contra a infância cresceu. “Tenho convicção de que agora é menos velada”, afirma Jefferson Drezett, coordenador do Serviço de Violência da unidade. O que estava “embaixo do tapete de casa” – já que a literatura mostra que em 90% dos casos o agressor é íntimo (pai, padrasto, tio) – agora começa a vir à tona. E a experiência com as vítimas adultas faz médicos olharem até de forma positiva para o atual perfil.
“Entendemos que o ciclo de violência está sendo rompido mais cedo”, afirma Drezett. A maior parte das pessoas só procurava ajuda médica depois de cinco anos, em média, sofrendo a agressão em silêncio. Pode ter sido o caso das duas jovens de 17 anos, outra de 19 e uma quarta de 21 que foram atendidas naquela mesma quarta-feira no serviço de violência do Pérola.
O rompimento mais cedo do muro de silêncio em torno da vítima é apontado como uma das consequências positivas da divulgação do assunto feita pela CPI da Pedofilia, por exemplo. “As mães passaram a acreditar mais nos filhos e sabem onde procurar ajuda”, afirma Daniela Pedroso, psicóloga responsável pelo atendimento do hospital. O que antes era escutado só como fantasia agora já é encarado como indício de que a criança pode estar sofrendo, completa ela.
Se as mães estão mais atentas aos pedidos de socorro, muitas vezes sutis, Daniela diz que ainda falta atenção de outros olhos e ouvidos. “É preciso que os profissionais de saúde, não só os ligados à área de violência, estejam mais atentos aos sinais, assim como professores”, completa a especialista.
Só a maior atenção das mães já implicou mudança de perfil dos atendimentos. Alteração que foi mais rápida do que a adaptação da estrutura física do Pérola Byington. Um dos sinais disso é que as mesas para as consultas ainda são todas para adultos e não voltadas ao público infantil. Foi a equipe de profissionais do ambulatório de violência que, sensível aos pacientes cada vez menores, montou uma brinquedoteca na sala de espera, no mês passado. Na última quinta-feira, a música de ninar que saía de uma das bonecas era o som que destoava do silêncio de quem esperava consulta. Embalado pelo ritmo, um menino que parecia ter só 6 anos dizia para mãe que “era preciso voltar a ser feliz”.
fonte: O Estado de S.Paulo 6/12/2009